O Espírito da Lei

“ Porque toda a lei se cumpre em um só preceito, a saber: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. ” (Paulo de Tarso, Gl. 5.14)

Em certa estação de trem, fora afixado um aviso que dizia “Proibida a entrada de cães”.

Alguns dias depois do aviso ser afixado, um homem se aproximou da entrada da estação. O homem segurava a ponta de uma corda esbranquiçada e frágil, que servia de coleira para um enorme urso pardo que o acompanhava enquanto caminhava na tentativa de entrar na estação. Diante da cena, o vigia responsável pela segurança da estação, impediu a entrada do homem acompanhado de seu urso de estimação. Enquanto o homem discursava ao vigia sobre seu direito de entrar acompanhado de seu urso, um soldado aposentado, herói de guerra, se aproxima da entrada. O soldado, que havia ficado parcialmente cego e com mobilidade extremamente comprometida devido aos ferimentos de guerra, traz consigo seu cãoguia, que o ajuda a caminhar e realizar tarefas cotidianas. O vigia da estação saúda o soldado e permite sua entrada enquanto era acompanhado de seu cão. Em que situação a norma foi cumprida? Em que situação houve justiça? Qual o sentido da norma?

“ Posso ser imoral ou indecente, mas não sou ilegal.” (Oscar Marone ao ser condenado por favorecimento à prostituição.)

Cursos de direito podem apresentar a situação anterior para ilustrar e problematizar um possível conflito entre a “letra”, ou formulação textual de uma norma, e sua intenção ou finalidade. A situação revela como é possível dissociar a justiça da norma. Agir de maneira justa ou moral nem sempre decorre de agir de acordo com a norma, e o contrário também é verdadeiro, agir de acordo com a norma nem sempre indica que a ação tomada é justa ou moralmente correta. É possível reconhecer essa dissociação também em famosos personagens lendários. Robin Hood era considerado o “bom” fora da lei, não porque cumpria a lei, mas exatamente porque ao infrigíla (considerando a maneira como o fazia, tirando dos ricos para dar aos pobres) promovia a justiça que a lei, injusta, era incapaz de promover. Não por acidente, seu principal rival é o xerife, representante máximo da aplicação da lei.

Os Miseráveis (1862), uma das principais obras de Vitor Hugo, apresenta a mesma dicotomia e de maneira talvez mais profunda. Ambientada na França entre o período prérevolucionário e a insurgência popular na ocasião da revolução francesa, a obra denuncia a extrema injustiça perpetrada por leis que beneficiavam ricos aristocratas e eram cruéis com a classe proletária. Jean Valjean, o fora da lei justo e misericordioso é perseguido ao longo de anos pelo impiedoso inspetor Javert, que cumpre a lei com extremo zelo e cuidado. Quando Javert é capturado pelas forças insurgentes que decidem executálo, Jean Valjean tem a chance de verse livre de seu perseguidor, mas recusa esse benefício e decide salvar Javert livrando o em seguida. Javert é então envolvido por um dilema para ele insolúvel. Jean Valjean, um criminoso, salvar-lhe a vida demonstrando compaixão e misericórdia, como poderia ele prender tal homem? Mas se não o prendesse estaria assim desonrando aquilo que sempre lhe fora valioso, a autoridade da lei.

“Odiosa coisa! Um malfeitor benfazejo, um forçado compadecido, meigo, prestável, clemente, tomando o bem pelo mal, perdoando a quem o odiava, preferindo a compaixão à vingança, preferindo até perder-se a perder um inimigo, salvando quem o tinha hostilizado, ajoelhado no cume da virtude, com mais de anjo do que de homem; Javert viase forçado a confessar que semelhante monstro existia!”  (Hugo, 2013, p. 986)

Incapaz de resolver seu dilema, Javert termina por tirar a própria vida. O dilema apresentado na situação da estação de trem e a proibição de entrada de cães é distinto dos casos relacionados à Robin Hood e à crítica geral presente em Os Miseráveis. No primeiro caso discutese a respeito da finalidade da lei. Qual o próposito da criação da lei? Embora se assuma que a lei seja boa, simplesmente por ser lei. Pascal concorda com Aristóteles quando diz que “A justiça é o que é estabelecido; assim, todas as nossas leis estabelecidas serão necessariamente consideradas justas sem ser examinadas, pois são estabelecidas” (Pascal, como citado em ComteSponville, 2009 p. 73)

O pensamento de Pascal alimenta o comportamento de Javert. Se as leis não devem ser examinadas, não se deve refletir sobre elas, então o homem serve à lei, e o dilema é posto. Mas assumindose que a lei seja boa, moral e justa, o que fazer para cumprir seu propósito e não apenas sua letra? Na situação da estação de trem o propósito era evidentemente proteger os demais usuários de eventuais ataques de um cão. Proibir a entrada do urso, que não está contemplado na norma, não contraria seu propósito, já que o risco de incidentes com um urso é muito maior do que com um cão. Permitir a entrada do cão guia tão pouco fere o princípio da lei, já que este é treinado exatamente para lidar com situações do tipo. Pensar a respeito da norma e de seu propósito revela a limitação da lei. A lei não pode contemplar todas situações possíveis para ser aplicada de maneira fria. Essa é a maior dificuldade de Javert, para quem a lei está acima da pessoa que a deve servir. Entender os princípios da lei valoriza a pessoa e coloca a lei a seu serviço.

Em o Pequeno Tratado das Grandes Virtudes, André ComteSponville diferencia normas, ou leis, de princípios morais, ou justiça.

“Respeitar as leis, sim, ou pelo menos obedecer a elas e defendêlas. Mas não à custa da justiça, não à custa da vida de um inocente. […] nenhuma democracia, nenhuma república seria possível se apenas obedecessemos às leis que aprovamos.” (ComteSponville, 2009, p. 74).

Sponville apresenta a questão de maneira mais clara. Obedecer às leis de maneira indiscriminada não promove a justiça centrada na pessoa, tão pouco ignorar as leis de maneira absoluta. A existência de leis justas garante o funcionamento normal da sociedade e balisa as ações cotidianas, mas os limites da lei precisam ser reconhecidos para que a justiça e a moral possam prevalecer sobre a letra da lei.

O caso de Robin Hood e de Os Miseráveis, trata de leis ou normas que são injustas em sua essência, tais como a escravidão ou o apartheid. E para o próprio Sponville, “quando a lei é injusta, é justo combatêla” (Sponville, 2009). Mas como combater uma lei instituida. Robin Hood roubava dos ricos, pois esses eram beneficiados por leis injustas. Contudo, embora Robin Hood seja um representante tipológico da justiça frente às leis injustas, seus métodos o tornam injustos, pois age com injustiça para com os ricos, que embora beneficiados pelas leis, não necessariamente têm culpa de sua existência. Ao combater a lei injusta, Hood ignora as leis justas e o estado, refugiase na floresta e ataca de maneira furtiva. O combate sem discurso dá força à uma justiça sem forma, que ao ser exercida alheia ao estado, tornase não só ilegal, mas injusta e perigosa. Não há virtude em sendo justo com os injustiçado, se pratique a injustiça com os que se julga injustos.

Henry Thoreau, expressou sua insatisfação com leis de um estado que considerava injusto. Em A Desobediência Civil (originalmente publicado em 1849), Thoreau denuncia diversos elementos que julga injustos. Desde a legalidade da escravidão até cobranças de impostos exagerados para financiamento militar. Thoreau denuncia também aqueles que sendo “justos”, acomodamse e nada fazem para combater aquilo que consideram injustiças, para ele “num governo que aprisiona qualquer pessoa injustamente, o verdadeiro lugar de um homem justo é também a prisão ” (Thoreau, 1997, p. 6). De acordo com o princípio da desobediência civil, não bastava estar fora da lei, como alguém que caminha alheio à sociedade, era preciso sofrer a injustiça da lei e manter a voz ativa na denuncia dessa injustiça (Thoreau, 1997).

A ideia de desobediência civil, de acordo com Thoreau, carrega alguns pressupostos. Em primeiro lugar é preciso estar disposto a sofrer as penas da lei uma vez que se recusar a desobedecer uma lei que se considera injusta. “Custa-me menos, em todos os sentidos, incorrer na pena de desobediência ao Estado do que me custaria obedecer-lhe.” (Thoreau, 1997, p. 8)

Também é preciso não se calar diante das leis injustas, independente das circunstâncias em que se encontre. “Se alguém pensa que ali [na prisão] sua influência se perderá, que sua voz não mais atormentará os ouvidos do Estado e que ele não será como um inimigo dentro de suas muralhas, é porque não sabe o quanto a verdade é mais poderosa que o erro, nem o quão mais eloqüente e eficazmente pode combater a injustiça aquele que já a tenha experimentado em sua própria carne.“ (Thoreau, 1997, p. 7)

Além disso é preciso diferenciar a situação da lei como foi antes dito. Se a lei é injusta, a desobediência civil é aplicável. Se a lei é justa e de bom propósito, é necessário que cada situação e circunstância seja julgada à luz da lei para que se decida se ela se aplica naquele momento, ou seja, se seu propósito está sendo respeitado. Em ambos os casos é evidente a diferença existente entre; princípio moral ou justiça, e lei ou norma.

A abordagem de Robin Hood ao problema da injustiça não se perpetua, quando o homem morre, sua obra se esvai de significado exatamente porque se desenvolveu de forma alheia ao estado, e porque não dizer à sociedade (ao menos de forma oficial). A desobediência civil tem se mostrado muito mais eficaz. As conquistas de Ghandi, Martin Luther King Jr. e Nelson Mandela são mantidas até hoje, ecoando a voz de seus líderes. Ignorar leis injustas exige coragem que batalha contra injustiças, custe o que custar. Mas assumir uma estratégia de desobediência civil além de coragem exige responsabilidade para assumir as consequências da postura escolhida e cuidar dos frutos por ela gerados. E a responsabilidade para com a justiça não exige apenas a disposição de cumprir uma lei, mas de refletir sobre ela afim de compreender seu propósito, seu sentido, seu “espírito”.

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